Levítico 13

Levítico 13

A questão de fundo de todas essas leis é: os israelitas iam aprendendo a regular seu cotidiano na perspectiva de sua relação com Deus. E por que deste jeito tão “carnal”? Porque é assim mesmo que é para ser. A relação com Deus é coisa do ser humano inteiro, e isso inclui a rotina diária, nossa existência corporal concreta. E isso os israelitas tinham, agora, oportunidade de aprender.

Levítico 13 trata de uma doença relativamente comum e muito séria, na época: a lepra. O que nestes textos se chama “lepra” inclui o que hoje chamamos de hanseníase, e também outros tipos de inchaços, erupções, inflamações (tanto em pessoas como em roupas e até em casas) que eram entendidos como expressão do mesmo princípio. Como se tratasse, pela experiência deles, de uma doença contagiosa, as providências tomadas eram bastante radicais. A humilhação pela qual as pessoas tinham que passar, a vida desumana que eram obrigadas a levar dali em diante (cf. Levítico 13.45-46), não entravam tão claramente no horizonte, nessa época. Como ainda veremos, o coração de Deus em relação a isso será revelado lá mais adiante, quando Ele se fizer carne, como nós, e tratar os “leprosos” com um carinho todo especial (como mostrarão diversas histórias dos Evangelhos).

No momento, as situações são encaradas do ponto de vista daquilo que afeta o povo todo. O tratamento das questões leva em conta os recursos concretos, tanto físicos como de consciência, disponíveis. Da perspectiva dos indivíduos, às vezes eles, de fato, são deixados para trás. Quando lemos esses textos hoje, não deveríamos simplesmente passar ao largo disso. O espírito que anima a narrativa bíblica anima também a esperança de que, de alguma forma, os indivíduos desfavorecidos nessas situações tenham sua dignidade (e sua vida) resgatada. Ler os Evangelhos desde esta perspectiva, nos mostrará aspectos do coração de Deus que talvez só lá vão aparecer mais claramente. Mas se lemos com atenção, vamos perceber que esse espírito anima também os textos que estamos lendo.

Dia 102 – Ano 1

Gênesis 3.20-24

Gênesis 3.20-24

O ser humano revela a suscetibilidade de desejar ser “igual a Deus”: dono do Jardim, submetendo-o aos seus propósitos e não aos de Deus. A distância do Criador que com isso se cria é dolorosamente expressa em Gênesis 3.8-9. O ser humano agora se esconde da presença de Deus, que mesmo sabendo disso continua a procurá-lo: “Onde estás?”

Gênesis 3.22 mostra o Criador em diálogo com os seres espirituais à sua volta. “O ser humano se tornou como um de nós, conhecedor do bem e do mal”, constata. Para impedir que os humanos se perpetuassem nessa condição e submetessem o Jardim aos seus propósitos agora revelados como potencialmente distintos dos do Criador, eles são mandados embora. O Jardim do Éden agora lhes fica inacessível, fortemente protegido.

O texto bíblico mostra claramente as consequências do gesto humano de ultrapassar o limite divino. Elas atingem a própria constituição do ser humano. A corporalidade transparente agora lhes causa vergonha, porque nada esconde. Mas agora, subitamente, os humanos querem se esconder. Dos outros, de Deus, de si próprios. Assim, num gesto de solidariedade, o Criador lhes reveste a corporalidade luminosa com uma nova. “E o Senhor Deus fez para o homem e sua mulher mantos de pele, e o revestiu” (Gênesis 3.21). “Mantos de pele” é cotnôt ôr, que faz um jogo de palavras entre “pele” e “luz”. A luz própria da corporalidade humana é revestida de “pele”, que significa aqui o corpo químico-físico carnal que temos hoje, apropriado para a existência fora do Jardim, “ao leste do Éden”, que os humanos terão na narrativa bíblica a partir de agora.

Dia 12 – Ano 1

Gênesis 3.6-7

Gênesis 3.6-7

A visão da árvore de cujo fruto Deus havia determinado que não comessem, como que envolve o ser humano num fluxo de emoções e sentimentos que o levam a tomar uma atitude sem pensar, naquele momento, nas consequências. “E ela apanhou um fruto e o comeu. E ofereceu também ao seu companheiro, que estava com ela, e ele comeu” (Gênesis 3.6). Muito se tem falado e conjeturado sobre esse texto, sob o risco de perder de vista o mais importante: a determinação divina quer ser uma espécie de limite para o ser humano. Os humanos cuidam do Jardim como representantes do Criador, não como donos.

“E se abriram os olhos de ambos. E perceberam que estavam nus” (3.7). A serpente havia dito que seus olhos se abririam, e que a partir de então seriam “conhecedores do bem e do mal” (3.5), como o próprio Deus. Gênesis 3.7 começa jogando com essas palavras. Seus olhos se abriram, sim. Mas o que passaram a conhecer? Com certa ironia, o texto diz: “conheceram que estavam nus”. 

A palavra hebraica iadá significa “conhecer”, mas às vezes fica melhor traduzir como “saber” ou “perceber”. Aqui pela primeira vez é dito do ser humano que ele “conhece” algo. Em 2.25 eles simplesmente “estavam nus”. O conhecimento era direto, sem reflexão. Não havia distância. Agora, em 3.7, sujeito e objeto do conhecimento estão separados. O ser humano se olha, como se estivesse fora de si próprio. Como se se visse pela primeira vez. E “sabe” que está nu. 

Dia 10 – Ano 1

Gênesis 3.1-6

Gênesis 3.1-6

A nudez, a total transparência em que vive o casal humano, é agora colocada à prova. Um sutil jogo de palavras aqui aponta para uma tensão no ambiente. Dos dois humanos é dito que estavam “nus” (arumim), transparentes em todos os sentidos, e que nada lhes trazia vergonha. De outra criatura do Jardim, a serpente, se diz que era arum, “esperta”, mais que todos os outros animais (Gênesis 3.1). A esperteza da serpente entra em contato com a transparência dos humanos. As consequências disso são o tema de Gênesis 3.1-7. 

O ponto que a serpente quer discutir com a mulher é a determinação divina de não comer do fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal (Gênesis 2.16-17). Ela sugere que a motivação que teria levado Deus  a determinar isso tinha a ver com não ter rivais. “Pois Deus sabe que, no dia em que vocês comerem dele, os olhos de vocês vão se abrir, e vocês serão como Deus, conhecedores do bem e do mal” (3.5). Pouco antes ela tinha dito com todas as letras que, contrário ao que Deus tinha dito, “vocês não morrerão” (3.4).

Gênesis 3.6 expressa o que se passa na cabeça do ser humano quando confrontado com estas questões. Como que já abrindo os olhos (a serpente não tinha dito que os olhos se abririam?), a mulher “viu” o que até então aparentemente havia passado despercebido. Que o fruto dessa árvore devia ser bem gostoso. Mais, parecia bem apetitoso. Mais, ele parecia corresponder a um profundo desejo que o ser humano de repente sentiu: saber das coisas.  Há aí um crescente, o envolvimento vai ficando cada vez maior e mais profundo. A Bíblia vai chamar isso de “tentação”.

Dia 9 – Ano 1

Gênesis 2.21-25

Gênesis 2.21-25

O processo de criação do ser humano é completado quando Deus decide que a melhor forma de parceria para ele seria tornar o princípio feminino uma pessoa à parte. E assim dividiu-o em dois. A palavra hebraica tselá pode ser traduzida como “costela”, mas seu sentido básico é “lado”. O Criador tirou um dos lados, e dele fez uma ishá (“mulher”), companheira do ish (“homem”). Cada um uma pessoa completa, mas tendo registrada em seu ser a memória de sua unidade original. 

Na aventura da vida, geração após geração, ambos se buscam e se apegam um ao outro. Quando o texto diz “e se tornam uma só carne”, isso significa bem mais que o ato sexual. Este é expressão de uma busca por uma conjunção de vida, um restabelecimento da unidade original da criação. A palavra daváq, “apegar-se”, caracteriza na espiritualidade judaica a relação do ser humano com Deus. A relação de seres humanos formando uma unidade que se torna símbolo da relação do ser humano com Deus. E também a relação do ser humano com os animais não deveria passar despercebida ao lermos este texto. A vocação de parceria entre os humanos caracteriza também a relação entre os animais e o ser humano, como vimos em Gênesis 2.20.

“E estavam ambos nus, o homem e sua mulher, e não sentiam vergonha” (2.25). Nudez aqui é uma transparência completa de um para com o outro, parte da condição original do ser humano, expressão de uma corporalidade luminosa e transparente que mais tarde viriam a perder.

Dia 8 – Ano 1

Gênesis 2.4-7

Gênesis 2.4-7

O Livro de Gênesis pode ser lido como uma história de “genealogias”, de listas de gente com suas histórias. A primeira lista/história começa em 2.4, a “história da descendência dos céus e da terra”. Deles surge a poeira do chão, e dela surge o ser humano. O ser humano é filho da terra e dos céus. Como ele foi esquecer isso?

Esquecendo que somos filhos e filhas dos céus, esquecemos nossa origem e nossa identidade em Deus (pior: criamos nossos próprios “céus” e nossos próprios deuses). Esquecendo que somos filhas e filhos da terra, passamos a dominá-la, usamos e abusamos dela.

Em Gênesis 2.7, a criação dos humanos é contada por outro ângulo. Deus cria um adam (ser humano) da adamá (terra). Deus molda a sua estrutura corporal, e sopra em suas narinas nishmat haiím, que se poderia traduzir como “sopro de vida”. Só que tendemos a esquecer que é da vida de Deus que o texto está falando. 

O sopro de Deus é pessoal, amoroso, inteligente, cheio de vida, vida eterna. Quando este sopro entra em contato com a estrutura corporal criada por Deus, surge uma criatura personalizada, amorosa, inteligente, cheia de vida: uma néfesh haiá, uma “alma viva” (Gênesis 2.7). O ser humano que Deus cria, portanto, é constituído por estes três elementos: o corpo, o sopro (espírito) divino e a alma que lhe dá sua “personalidade”, e que inclui energia vital, emoções, afetos, inteligência, vontade.

Dia 6 – Ano 1

Gênesis 1.26 – 2.3

Gênesis 1.26 – 2.3

O movimento da criação chega ao seu ápice no sexto dia (Gênesis 1.24-27). Nele, ao comando de Deus, a terra faz surgir as espécies animais que povoam o planeta (1.24). Nele, também, Deus faz o ser humano (1.26-27). Este relato tem características próprias. Primeiro, Deus dialoga com os seres espirituais à Sua volta, que participam do processo. Segundo, o adam (ser humano) a ser criado terá responsabilidade sobre a vida no planeta. Terceiro, o ser humano será representante do Criador (Sua imagem).

O v.27 deve ser lido com atenção. “E criou Deus o ser humano à Sua imagem, à imagem de Deus o criou. Masculino e feminino os criou”. O ser humano criado à imagem de Deus contém em si tanto o princípio masculino como o feminino. Eles só serão separados mais tarde (Gênesis 2.20-25). O ser humano à imagem de Deus é como o próprio Deus, com características tanto paternas quanto maternas, tanto masculinas quanto femininas. Isso se reflete, entre outras coisas, no modo como ele deveria administrar a criação. Não como dominadores, mas como “pastores do ser” (1 Pedro 5.2-3), cuidadores e cuidadoras da criação e da vida.

Ao fim do sexto dia, Deus examina tudo que fez (“os céus, a terra e o conjunto dos seres que os habitam”, Gênesis 2.1). E constata que tudo está “muito bom” (1.31). No sétimo dia, temos o que Hebreus 4.10 chama de “descanso de Deus”, que completa a criação. Deus o declara “dia santo” (Gênesis 2.3). Paulo o descreve como o dia em que Deus “será tudo em todos” (1 Coríntios 15.28). Os humanos são chamados a viver a boa criação divina na perspectiva desse dia, que emoldura a nossa caminhada.

Dia 5 – Ano 1