Gênesis 7

Gênesis 7

A aposta de Deus em Sua criação passa por um processo de regeneração. Isso é descrito como uma volta à condição originária. Os seres vivos morrerão. E Deus fará um pacto com Noé, que será protegido da catástrofe (Gênesis 6.17-18). Além de Noé e sua família, foram preservados também um casal de cada espécie (mais que um até, no caso de animais que a lei judaica considerava limpos). 

A narrativa parece ir devagar quando conta os preparativos (7.1-16). Deus e Noé vão trabalhando juntos, com cuidado, para que tudo funcione e que criaturas possam ser salvas em meio à destruição. O relato do dilúvio (7.17-24) também vai avançando devagar. Dá quase para ver como as águas vão subindo, pouco a pouco. A agonia chega ao auge no v.23, onde é atestado que tudo que vivia na terra morreu, menos os que estavam dentro da arca.

O capítulo 7 de Gênesis parece uma imagem invertida do capítulo 1. O capítulo 1 começa com as águas que cobriam toda a terra, e vai descrevendo como Deus cria a vida e como tudo vai aparecendo. O capítulo 7 começa com a terra como ela se encontrava no fim do relato da criação, e vai descrevendo como a ação das águas vai eliminando a vida, até que no fim (7.24) tudo está como estava em 1.2 (águas cobrindo tudo). A constante repetição das espécies vivas (7.14,21,23) lembra o relato de como elas foram criadas no capítulo 1.

A sensação final é de desolação. A boa criação divina foi corrompida até o ponto da destruição. E agora? Aqueles 150 dias de que fala 7.24 estão entre os mais tristes da história do mundo. E agora?

Dia 16 – Ano 1

Gênesis 2.21-25

Gênesis 2.21-25

O processo de criação do ser humano é completado quando Deus decide que a melhor forma de parceria para ele seria tornar o princípio feminino uma pessoa à parte. E assim dividiu-o em dois. A palavra hebraica tselá pode ser traduzida como “costela”, mas seu sentido básico é “lado”. O Criador tirou um dos lados, e dele fez uma ishá (“mulher”), companheira do ish (“homem”). Cada um uma pessoa completa, mas tendo registrada em seu ser a memória de sua unidade original. 

Na aventura da vida, geração após geração, ambos se buscam e se apegam um ao outro. Quando o texto diz “e se tornam uma só carne”, isso significa bem mais que o ato sexual. Este é expressão de uma busca por uma conjunção de vida, um restabelecimento da unidade original da criação. A palavra daváq, “apegar-se”, caracteriza na espiritualidade judaica a relação do ser humano com Deus. A relação de seres humanos formando uma unidade que se torna símbolo da relação do ser humano com Deus. E também a relação do ser humano com os animais não deveria passar despercebida ao lermos este texto. A vocação de parceria entre os humanos caracteriza também a relação entre os animais e o ser humano, como vimos em Gênesis 2.20.

“E estavam ambos nus, o homem e sua mulher, e não sentiam vergonha” (2.25). Nudez aqui é uma transparência completa de um para com o outro, parte da condição original do ser humano, expressão de uma corporalidade luminosa e transparente que mais tarde viriam a perder.

Dia 8 – Ano 1

Gênesis 2.8-20

Gênesis 2.8-20

Depois de criar o ser humano, Deus prepara a sua morada, um jardim com todo tipo de árvores. Duas chamam a atenção: a árvore da vida e a do conhecimento do bem e do mal (Gênesis 2.9). No jardim nasce um rio, que se abre em quatro e rega a terra toda (2.10-14). O ser humano tem a função de trabalhar e guardar o jardim (2.15), como representante do Criador. Para nunca esquecer que é representante de Deus, e não dono do jardim, Deus deixa uma determinação: o ser humano pode comer de tudo, só não da árvore do conhecimento do bem e do mal. Isso lhe traria a morte (2.16-17). Essa função de cuidadores do paraíso se estende a todos os humanos, até nós hoje. E também a responsabilidade de ser cuidadores e não querer ser donos do jardim.

Percebendo que estar só não era bom para o ser humano, Deus cria animais e aves para estarem ao seu lado (2.18-20). A expressão hebraica êzer qenegdô (2.18) significa “alguém para ajudar e estar ao lado”. Não envolve nenhum tipo de subordinação. Talvez a palavra que melhor traduza essa expressão seja “ser parceiro”, que envolve tanto partilha de tarefas como convivência. A mesma expressão é usada em Gênesis 2.20 para se referir ao parceiro ou à parceira que Deus vai criar, ao constatar que entre os animais criados não se achava um parceiro ideal. 

Essa vinculação entre o ser humano e os animais é importante. Quando o profeta (Isaías 11.6-9) fala da convivência mútua entre humanos e animais na era vindoura, temos aí uma boa descrição de como Deus pensou a sociedade do Éden. 

Dia 7 – Ano 1

Gênesis 2.4-7

Gênesis 2.4-7

O Livro de Gênesis pode ser lido como uma história de “genealogias”, de listas de gente com suas histórias. A primeira lista/história começa em 2.4, a “história da descendência dos céus e da terra”. Deles surge a poeira do chão, e dela surge o ser humano. O ser humano é filho da terra e dos céus. Como ele foi esquecer isso?

Esquecendo que somos filhos e filhas dos céus, esquecemos nossa origem e nossa identidade em Deus (pior: criamos nossos próprios “céus” e nossos próprios deuses). Esquecendo que somos filhas e filhos da terra, passamos a dominá-la, usamos e abusamos dela.

Em Gênesis 2.7, a criação dos humanos é contada por outro ângulo. Deus cria um adam (ser humano) da adamá (terra). Deus molda a sua estrutura corporal, e sopra em suas narinas nishmat haiím, que se poderia traduzir como “sopro de vida”. Só que tendemos a esquecer que é da vida de Deus que o texto está falando. 

O sopro de Deus é pessoal, amoroso, inteligente, cheio de vida, vida eterna. Quando este sopro entra em contato com a estrutura corporal criada por Deus, surge uma criatura personalizada, amorosa, inteligente, cheia de vida: uma néfesh haiá, uma “alma viva” (Gênesis 2.7). O ser humano que Deus cria, portanto, é constituído por estes três elementos: o corpo, o sopro (espírito) divino e a alma que lhe dá sua “personalidade”, e que inclui energia vital, emoções, afetos, inteligência, vontade.

Dia 6 – Ano 1

Gênesis 1.26 – 2.3

Gênesis 1.26 – 2.3

O movimento da criação chega ao seu ápice no sexto dia (Gênesis 1.24-27). Nele, ao comando de Deus, a terra faz surgir as espécies animais que povoam o planeta (1.24). Nele, também, Deus faz o ser humano (1.26-27). Este relato tem características próprias. Primeiro, Deus dialoga com os seres espirituais à Sua volta, que participam do processo. Segundo, o adam (ser humano) a ser criado terá responsabilidade sobre a vida no planeta. Terceiro, o ser humano será representante do Criador (Sua imagem).

O v.27 deve ser lido com atenção. “E criou Deus o ser humano à Sua imagem, à imagem de Deus o criou. Masculino e feminino os criou”. O ser humano criado à imagem de Deus contém em si tanto o princípio masculino como o feminino. Eles só serão separados mais tarde (Gênesis 2.20-25). O ser humano à imagem de Deus é como o próprio Deus, com características tanto paternas quanto maternas, tanto masculinas quanto femininas. Isso se reflete, entre outras coisas, no modo como ele deveria administrar a criação. Não como dominadores, mas como “pastores do ser” (1 Pedro 5.2-3), cuidadores e cuidadoras da criação e da vida.

Ao fim do sexto dia, Deus examina tudo que fez (“os céus, a terra e o conjunto dos seres que os habitam”, Gênesis 2.1). E constata que tudo está “muito bom” (1.31). No sétimo dia, temos o que Hebreus 4.10 chama de “descanso de Deus”, que completa a criação. Deus o declara “dia santo” (Gênesis 2.3). Paulo o descreve como o dia em que Deus “será tudo em todos” (1 Coríntios 15.28). Os humanos são chamados a viver a boa criação divina na perspectiva desse dia, que emoldura a nossa caminhada.

Dia 5 – Ano 1

Gênesis 1.9-25

Gênesis 1.9-25

Cada dia da criação segue um padrão parecido. É bonito acompanhar a cadência e solenidade que as repetições, inclusive, dão ao texto. Cada dia é descrito como tendo “entardecer e amanhecer”, isso se refere ao passar do tempo. Deus vai dando nomes às coisas. Deus vai avaliando e dizendo que “está bom”. O mais importante nesse ritmo da criação está no começo do relato de cada dia: “Deus disse”. E na sequência, “e assim se fez”, ou “Deus fez”. “Pois Ele falou, e tudo se fez” (Salmos 33.9). Essa ligação entre Palavra de Deus e mundo é  importante na Bíblia. A criação não só surge da Palavra, mas a contém. É viva, como é viva a Palavra que a cria e sustenta. “Todas as coisas foram feitas por meio da Palavra, sem ela nada do que foi feito se fez” (João 1.3).

A cada novo dia, a criação vai evoluindo. As águas que cobriam a superfície são juntadas num lugar, deixando espaço para a terra seca (Gênesis 1.9-10). A terra, agora, como terra de Deus, começa a produzir vida vegetal (1.11-13). No firmamento do céu, Deus faz surgir as estrelas. Destaque é dado ao sol e à lua, que passarão a reger os dias, meses e as épocas do ano (1.14-19). As águas, agora, como águas de Deus, começam a gerar vida animal. E também no firmamento surge vida, pássaros de todo tipo (1.20-23). Depois disso, a terra passa a um novo estágio, produzindo vida animal (1.24-25). Deus, as águas, a terra vão gerando vida. Sem que se precise fazer uma distinção. 

Dia 4 – Ano 1

Gênesis 1.4-8

Gênesis 1.4-8

A luz que surgiu por ordem divina é boa (v.4). O pensamento de Deus é palavra que, animada pelo Espírito, se concretiza de uma forma que corresponde ao que Deus cria em Seu coração

Deus dá nome a cada coisa. Temos que ter um certo cuidado em não identificar demasiado as palavras com as coisas. O próprio texto mostra isso. No v.4, “escuridão” é, ao mesmo tempo, a condição originária de antes da criação e uma parte de um dia. A “luz” é, ao mesmo tempo, a condição original da criação e uma parte de um dia. E mesmo a palavra “dia” deve ser entendida num duplo registro. É um dia normal, com luz e escuridão e, ao mesmo tempo, um período indefinido de tempo. O sol, que marca a passagem dos dias, só será criado no quarto dia.

Depois de criar a luz, a matéria-prima de toda a criação, Deus  separa a luz da escuridão. “A luz brilha na escuridão, e a escuridão não pode contê-la” (João 1.5). A escuridão permanecerá como lembrança de que a criação é um milagre que se repete constantemente. 

No segundo dia, Deus faz uma separação dentro da criação. As águas do escuro abismo primordial (Gênesis 1.2) são atravessadas pela luz, resultando no “firmamento” que separa as águas em dois conjuntos. O “firmamento” é o nosso céu, a abóbada celeste. Temos alguma dificuldade em compreender certos aspectos deste texto. Porém, isso não nos impede de cantar: “Os céus proclamam a glória de Deus, o firmamento anuncia as obras de Suas mãos” (Salmos 19.1).

Dia 3 – Ano 1

Gênesis 1.3

Gênesis 1.3

“E o Espírito de Deus começou a soprar por sobre as águas … e Deus disse: Haja luz! E houve luz”. O sopro do Espírito se torna Palavra, e sua primeira concretização é luz.

Essa luz originária da criação contém bem mais coisas do que poderia parecer. Não se trata da luz do sol ou das estrelas. Esses só serão criados no quarto dia. É a luz como “matéria prima” do universo. Hoje em dia falamos em energia. Uma energia luminosa divina é o substrato material de toda a criação. Por ser divina, ela é mais do que apenas “energia” e “luz”. A luz da criação é, a um só tempo, energia amorosa, inteligente e luminosa. Como luz, ela representa o substrato físico-químico do universo. Como inteligente, ela representa a mente criativa de Deus. Como amorosa, ela cristaliza em si o Espírito divino, na Bíblia costumeiramente identificado com o amor.

Nem seria de esperar que algo produzido pelo Espírito-Palavra de Deus pudesse ser outra coisa que amoroso, inteligente, luminoso. No entanto, para compreender isso nós hoje precisamos fazer um exercício de “desconstrução” de um pensamento dividido, fragmentado. Nossa razão tende a separar esses elementos em caixinhas distintas. E acaba pensando que é isso que eles são. Amor seria uma coisa, inteligência outra, luz outra.

A luz criada por Deus no primeiro dia já contém em si a criação toda. Dela, e como expressão dela, brotarão os elementos que serão criados, à medida em que a Palavra divina os chama à existência. Ela emana do próprio Deus. “Na Tua luz vemos a luz” (Salmos 36.9) É a “luz verdadeira” (João 1.9), a luz da qual “tudo que foi feito se fez” (João 1.3). Que essa luz nos ilumine ao longo dessa caminhada pela Bíblia, para que possamos perceber nas palavras da Bíblia o Espírito-Palavra de Deus.

Dia 2 – Ano 1

Gênesis 1.1-3

Gênesis 1.1-3

O mundo como o vemos hoje, o mundo no qual vivemos, segundo a Bíblia não preserva sua condição original. É como se toda uma dimensão tivesse sido perdida. Na Bíblia, a história desse “nosso” mundo começa no capítulo 4 de Gênesis: o casal humano, expulso do paraíso, passa a viver “ao leste do Éden”. Criam filhos, trabalham a terra. Os filhos vão fazendo suas próprias histórias. E Deus faz história com eles.

Os primeiros capítulos da Bíblia nos levam “aos bastidores” desse mundo, contando a história de como Deus criou o universo e a humanidade, e de como a humanidade começou a traçar seus caminhos dentro dos caminhos de Deus.

Os primeiros versículos da Bíblia nos mostram como tudo começou. Como foi criada a vida no universo e em nosso mundo. Não é um tratado científico. É um tipo de ciência poética, que celebra neste mundo o amor e o cuidado de Deus por Suas criaturas.

É importante observar bem o movimento destes três primeiros versículos de Gênesis. O v.1 declara: Deus criou tudo que existe. O v.2 começa descrevendo a condição inicial, falando do que “não é” como cenário para falar do que virá a ser. E termina com o começo da criação propriamente dita, quando começa o movimento: o Espírito de Deus sopra sobre o abismo úmido e escuro.

A conexão entre os v.2 e 3 é muito importante. O sopro-espírito de Deus se transforma em palavra. É como quando, no inverno, dá para ver um sopro que sai da boca quando alguém fala. É um movimento só. O espírito é energia criadora, forte, dinâmica. A palavra é racional, coerente, organizadora. Juntos dão origem à criação. E juntos a sustentam constantemente. 

Vale já aqui a advertência de Jesus: não separar o que em Deus é unido (Marcos 10.9). Começando assim a leitura da Bíblia, nos colocamos em boa perspectiva. Que Deus nos conceda o poder do Espírito e a sabedoria da Palavra, e a capacidade de mantê-los sempre juntos.

Dia 1 – Ano 1